Uma das medidas aventadas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para equilibrar as contas federais é promover mudanças no Simples Nacional, regime especial de tributação para micro e pequenas empresas. Os ajustes são estudados pelo Ministério do Planejamento, comandado pela ministra Simone Tebet, e reavivam um antigo debate sobre o incentivo – que, segundo a Receita Federal, é a maior de todas as renúncias fiscais da União.
Os defensores dizem que o Simples nem sequer deveria ser considerado uma renúncia fiscal, pois sem ele muitas das empresas enquadradas nem sequer existiriam ou estariam na informalidade – e, portanto, não recolheriam tributos. De outro lado, críticos afirmam que o sistema desestimula o crescimento das empresas e acumulou distorções com o tempo, ao elevar os limites de enquadramento e permitir o ingresso de profissionais liberais.
O Ministério do Empreendedorismo defende o regime tributário e seu papel na criação de empregos formais e nas taxas de nascimento e morte de empresas, mas disse à Gazeta do Povo que concorda com a ministra Tebet “sobre a importância de o Simples passar por uma revisão, para aprimorarmos o sistema”. A pasta afirmou estar pronta para participar do debate com os ministérios do Planejamento e da Fazenda e a sociedade civil.
Tebet declarou que o Simples precisa ser "aprimorado", reduzir distorções e gerar mais receita para o governo. A medida se enquadraria no eixo que a ministra denominou de revisão de gasto vertical – incluindo a retificação de erros, fraudes e ineficiências.
Ela citou medidas para verificar quais profissionais têm se enquadrado como Microempreendedores Individuais (MEI), e também um cruzamento de dados, pela Receita Federal, a fim de identificar empresas que abrem diversos CNPJs para não serem desenquadradas do Simples. Na avaliação dela, "o que é considerado Simples e Microempreendedor foi ampliado em demasia".
"Tem gasto tributário que não precisa ser extinto, mas aprimorado. O Supersimples, em relação aos valores. O que é considerado o Supersimples no Brasil? Quem é microempreendedor individual? É uma segunda análise no redesenho. Não vamos extinguir, mas aperfeiçoar e amarrar um pouco mais, que isso dá receita também", disse Tebet à Folha de S.Paulo.
A ministra afirmou que essa revisão seria uma forma de fazer “justiça tributária” e mencionou que o Simples Nacional abarca entre 27% e 28% de todos os "gastos tributários" – os incentivos fiscais – do governo federal. Por ter um regime tributário diferenciado dos demais, com impostos reduzidos, o Simples é contabilizado pelo governo como gasto tributário, que é como a Receita Federal chama as desonerações.
Os números estimados pela Receita são um pouco menores que os citados por Tebet. Segundo o Demonstrativo de Gastos Tributários anexado ao Orçamento, a previsão do Fisco é de que o Simples corresponda a 23,94% de toda a renúncia fiscal da União em 2024 e 22,25% em 2025.
Tanto neste quanto no próximo ano, o valor total estimado pela Receita em benefícios fiscais ultrapassa meio trilhão de reais. Segundo Tebet, o regime foi “ampliado em demasia” e é preciso “coragem” para revisar erros e fraudes.
O diretor-executivo da Instituição Financeira Indepente (IFI), Marcus Pestana, afirma que seria preciso mexer no montante das renúncias a fim de garantir a saúde das contas públicas. Em relação ao Simples Nacional, ele avalia que o teto de R$ 4,8 milhões de faturamento é muito alto para uma pequena empresa, pois equivale a R$ 400 mil por mês de faturamento.
Além disso, ele cita a “pejotização” de profissionais, que deixam de trabalhar em regime CLT para serem contratados com PJ e, para tanto, se tornam MEI ou abrem empresas pelo Simples. Ele também cita como práticas a serem corrigidas e evitadas o caso de empresas que abrem vários CNPJs para diluir o faturamento e continuar pagando menos impostos.
Coordenador do curso de Direito da Faculdade Belavista, o professor Ricardo Castagna defende que o Simples não deveria ser visto como um benefício tributário do governo, e sim como um regime tributário diferenciado para as pequenas e microempresas. Ele vê o atual enquadramento como um “erro enorme de premissa, um erro conceitual que acaba gerando políticas públicas e decisões distorcidas”, afirmou.
Segundo Castagna, o Simples Nacional é um regime tributário diferenciado, que jamais deveria ser incluído no Demonstrativo de Gastos Tributários, elaborado pela Receita Federal com as projeções de benefícios fiscais anuais. O professor diz que o regime do Simples está previsto na Constituição Federal, que exige um sistema unificado e simplificado de pagamento de impostos federais, estaduais e municipais para as pequenas e médias empresas.
“A Constituição também define que a proteção às pequenas e médias empresas é um dos pilares da nossa ordem econômica”, esclarece. Segundo ele, benefícios fiscais são concessões para impulsionar determinados setores em momentos específicos.
O Ministério do Empreendedorismo também defende que a premissa adotada, de que o Simples é uma renúncia fiscal, precisa ser revista. A pasta pontua que o cálculo de renúncia tributária citado não considera aspectos vinculados à existência do Simples Nacional.
Para tanto, cita dados do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP). Eles indicam que a renúncia tributária seria pelo menos 13% maior se não fossem considerados comportamentos das empresas decorrentes da existência do Simples Nacional, como a redução de custos do sistema tributário brasileiro e o incentivo à formalização.
Com base em dados da Receita Federal, o ministério ainda afirma que, em 2021 e 2022, as empresas do regime de lucro real pagaram o equivalente a 10,09% do seu faturamento em impostos e contribuições previdenciárias, enquanto as empresas do Simples Nacional pagaram 11,77%.
O Simples foi criado em 2006, durante o primeiro mandato do presidente Lula. Em 2011, a Lei Complementar 139 ampliou o limite de receita bruta das empresas que integram o regime e reduziu as alíquotas das faixas do Simples Nacional. As mudanças levaram ao aumento nos valores estimados de renúncia a partir de 2012, ou seja, o governo teria deixado de arrecadar mais impostos dessas empresas.
Em 2011, o montante de gastos tributários estimados pela Receita com o Simples era de R$ 23,3 bilhões, o equivalente a 20,12% dos R$ 116 bilhões em renúncias fiscais daquele ano. Em 2014, o montante relacionado ao Simples saltou para R$ 61,7 bilhões, ou 24,7% do total.
Em 2015, entraram em vigor novas mudanças, trazidas pela Lei complementar 147, que ampliou o rol de setores que integravam o Simples. A nova regra permitiu a adesão de profissionais liberais ao regime.
Se entre 2011 e 2015 o valor total dos incentivos fiscais mais que dobrou, passando de R$ 116 bilhões para R$ 282 bilhões, a renúncia estimada com o Simples mais que triplicou, saindo de R$ 23,3 bilhões para R$ 72,4 bilhões, segundo a Receita.
Em janeiro de 2018, o Simples passou por nova atualização, quando houve o aumento do teto de arrecadação para R$ 4,8 milhões. Com isso, a estimativa de renúncia fiscal da Receita chegou a R$ 80,6 bilhões, ou 28,45% do total de incentivos federais.
O montante relativo ao Simples Nacional cresceu ainda em 2019, chegando a R$ 87,2 bilhões, e em seguida apresentou duas quedas sucessivas em 2020 e 2021, quando atingiu R$ 83,2 e R$ 74,3 bilhões respectivamente. Nesses anos, a porcentagem em relação aos gastos tributários totais também foi reduzida, saindo de 28,48% em 2019, para 24,13% em 2021.
No último ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os gastos fiscais com o Simples voltaram a crescer, chegando a R$ 81,8 bilhões, contudo, sua participação em relação ao total de benefícios seguiu em queda, chegando a 22,05%.
Para este ano, a Receita estima desoneração de R$ 125 bilhões com o Simples, equivalente a 23,94% das renúncias federais. A projeção para 2025 é um pouco menor, de R$ 120 bilhões. Veja os dados na tabela abaixo:
Fonte: Demonstrativo de Gastos Tributários/Receita Federal
Para Joelson Sampaio, professor de economia da FGV EESP, o Simples foi muito alargado e, portanto, há espaço para melhorias. Ele avalia que há empresas que podem migrar para outras regras.
Por outro lado, Sampaio defende que o Simples tem um papel importante para as micro e pequenas empresas, em razão da alta carga de impostos. “A carga tributária é muito grande e pode inviabilizar o negócio.”
A controvérsia sobre o impacto do Simples na economia e as distorções ou injustiças tributárias do sistema não é nova. Em 2015, o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, encomendou ao Banco Mundial um estudo sobre o regime.
As conclusões vieram somente em dezembro de 2017, conforme reportado pela Gazeta do Povo. O relatório, intitulado “Um ajuste justo”, destacou que o regime era “caro e potencialmente distorcivo”, pois estimulava as empresas a continuar pequenas e, dessa forma, evitar impostos mais altos.
Pela lógica dos técnicos do Banco Mundial, o regime ainda prejudicava a competitividade de companhias de médio porte, já que acabam por recolher tributos mais elevados.
No fim, afirma o relatório, quem paga a conta são empresas “que poderiam crescer e gerar mais empregos para os que se encontram atualmente desempregados, ou para trabalhadores subempregados e menos privilegiados”.
Na visão do Ministério do Empreendedorismo, o Simples é uma ferramenta importante para desburocratizar o ambiente de negócios e reduzir gastos das empresas. Segundo a pasta, o regime influencia a criação de empregos formais, e as firmas beneficiadas têm taxa de crescimento do emprego formal 3% maior do que as enquadradas em outros regimes.
Além disso, o Simples Nacional tende a influenciar as taxas de nascimento e morte de firmas, gerando um impacto total na geração de empregos formais ainda maior. De acordo com estimativas do ministério, o Simples tende a aumentar em 1,8% a taxa de entrada em atividade de firmas formais; e a reduzir a taxa de saída de firmas formais em 0,3%.
Ainda assim, a pasta afirma que há espaço para melhoras e que o sistema não é perfeito, livre de injustiças tributárias. No entanto, diz que o regime tributário convencional é ainda pior.
O ministério defende que o limite por faturamento é injusto, especialmente para as micro e pequenas indústrias e comércios, que consomem grande parte do seu limite com aquisições de matérias-primas ou de produtos para revenda.
Gazeta do Povo