Passou despercebido, mas no último dia de 2024, em 31 de dezembro, o governo federal publicou a Medida Provisória nº 1.286, trazendo uma série de mudanças na estrutura administrativa do serviço público. Apesar de não ter chamado atenção, a medida contém elementos que podem provocar transformações significativas, particularmente no que diz respeito à redução da presença de militares em funções administrativas.
A MP estabelece a criação de uma nova carreira civil, a Carreira de Desenvolvimento das Políticas de Justiça e Defesa, com o objetivo de substituir gradualmente os militares em áreas como o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). A iniciativa reflete uma tentativa de reorganizar a gestão pública e reafirmar o caráter técnico e civil de determinados setores.
A nova carreira terá foco em demandas administrativas de ministérios como o da Defesa, Justiça e do GSI, com servidores civis assumindo funções antes desempenhadas por militares. A transversalidade permitirá que os profissionais dessa carreira atuem em diferentes ministérios com temas correlatos.
Desde a redemocratização, a ocupação de cargos administrativos por militares tem sido uma prática recorrente em ministérios como o da Defesa. A criação da nova carreira busca corrigir essa dinâmica, permitindo que as Forças Armadas concentrem esforços em suas atribuições constitucionais, enquanto a gestão administrativa é transferida para servidores civis.
A ministra da Gestão, Esther Dweck, afirmou que o objetivo da medida é fortalecer a capacidade técnica da administração pública. “As Forças Armadas acabam mobilizando militares para atividades administrativas, o que não é ideal. Queremos reverter isso com a criação de uma carreira civil especializada”, disse a ministra em entrevistas recentes.
A publicação da MP gerou reações distintas. Enquanto representantes do governo destacam a profissionalização do serviço público, setores das Forças Armadas demonstraram incômodo, especialmente pela ausência de reajustes salariais para militares na MP. Historicamente, reajustes para militares são tratados em legislações específicas, mas o contexto atual adiciona um tom simbólico à discussão.
Membros das Forças Armadas interpretaram a criação da nova carreira como uma tentativa de reduzir sua presença em áreas administrativas. Embora o governo argumente que a medida visa exclusivamente modernizar a gestão pública, o movimento também pode ser entendido como parte de um esforço para reforçar a separação entre funções civis e militares.
O apoio do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, foi considerado essencial para a viabilização da medida. Segundo relatos de bastidores, Múcio teria articulado com o presidente Lula e outros membros do governo a necessidade de consolidar uma estrutura civil no Ministério da Defesa.
A Carreira de Desenvolvimento das Políticas de Justiça e Defesa é apresentada como parte de um esforço mais amplo para modernizar a administração pública brasileira. O uso de carreiras transversais, como a nova estrutura proposta, segue modelos já implementados em áreas como infraestrutura e tecnologia da informação. A expectativa do governo é de que o concurso público para o preenchimento das vagas seja anunciado em fevereiro de 2025.
A MP também reflete uma tentativa de alinhar o serviço público brasileiro a padrões de eficiência e autonomia técnica, limitando a presença de militares em áreas tradicionalmente civis.
Embora tenha passado despercebida em um primeiro momento, a Medida Provisória nº 1.286 estabelece mudanças que podem alterar significativamente a dinâmica entre civis e militares na administração pública. A iniciativa insere-se em um contexto de crescente demanda por eficiência e especialização técnica, mas também evidencia tensões em torno da presença militar em áreas administrativas.
Ao criar uma nova carreira civil para setores como justiça e defesa, o governo sinaliza uma tentativa de reorganizar o serviço público, mesmo que isso signifique enfrentar resistências de setores que tradicionalmente ocupavam essas posições. A transição não será simples, mas representa um movimento estratégico dentro da gestão pública federal.
A medida, além de reorganizar a estrutura administrativa, atinge diretamente um dos principais instrumentos utilizados pelos militares para exercer influência política. Historicamente, a ocupação de cargos civis administrativos por militares tem sido uma prática comum, atravessando governos de diferentes espectros ideológicos — de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro, passando por Dilma Rousseff, Michel Temer e o próprio governo atual de Luiz Inácio Lula da Silva. Esses cargos têm servido como plataformas de poder, permitindo aos militares não apenas proximidade com o Executivo, mas também influência direta em políticas públicas.
Os cargos administrativos como instrumentos de influência política
A presença de militares em funções administrativas é um fenômeno que transcende governos e períodos políticos. A ocupação dessas posições garante aos militares:
A Medida Provisória nº 1.286 busca limitar essa influência ao transferir gradualmente funções administrativas para servidores civis especializados, ingressados por meio de concurso público.
A nova carreira, anunciada pela MP, é transversal e permite que servidores civis atuem em diferentes ministérios e órgãos. Sua estrutura foi planejada para substituir militares em funções administrativas, com foco em atividades como:
Além disso, a MP autoriza a transformação de cargos obsoletos em funções voltadas para essa nova carreira, aproveitando posições já existentes para evitar aumento de custos no curto prazo. A transversalidade da carreira também promete maior flexibilidade e eficiência no atendimento às demandas administrativas.
A MP reflete um esforço do governo para reorganizar as relações entre civis e militares na administração pública. Desde a redemocratização, militares têm ocupado funções civis de forma recorrente, especialmente em governos que priorizaram sua presença como uma estratégia de controle e aproximação política.
Durante o governo Bolsonaro, essa prática foi amplamente ampliada, com militares ocupando cargos em ministérios como Saúde e Meio Ambiente. Contudo, a ocupação de posições administrativas pelos militares não se limitou a um único governo, sendo parte de uma prática institucionalizada que a nova carreira busca reverter.
Impactos políticos e administrativos
Ao limitar a presença militar em cargos administrativos, a MP promove:
A transição não será simples. A influência histórica dos militares na administração pública, somada à resistência interna de setores militares, pode dificultar a implementação da nova estrutura. A ausência de reajustes salariais para militares na MP, por exemplo, já gerou insatisfação na caserna.
Além disso, a nova carreira exigirá o desenvolvimento de um corpo técnico especializado para substituir os militares de forma gradual e eficiente. O governo prevê anunciar um concurso público em fevereiro de 2025 para preencher as vagas, mas o processo de transição pode levar anos para ser plenamente consolidado.
A Medida Provisória nº 1.286 não é apenas um ato de reorganização administrativa; ela representa uma tentativa de limitar a influência militar no governo e de redefinir as relações entre civis e militares na administração pública. Ao criar a Carreira de Desenvolvimento das Políticas de Justiça e Defesa, o governo Lula busca reforçar o caráter técnico e democrático das instituições, marcando um movimento estratégico que pode redefinir o papel dos militares na gestão federal.
Embora a transição traga desafios e resistências, a MP sinaliza um esforço claro para desmilitarizar a administração pública, fortalecer a gestão técnica e reduzir o espaço de atuação política dos militares em órgãos civis. Trata-se de um marco no processo de modernização da máquina pública e na consolidação de práticas democráticas na governança federal.
Fonte: Brasil Popular